Zumbologia – Parte III

Chegamos então à última aula desse módulo sobre Zumbologia! Como visto nos nossos dois últimos encontros, temos uma ampla gama de explicações para o fenômeno zumbi (Parte I) mas elas pecam no sentido de fazer um morto-vivo técnicamente morto, enquanto as explicações mais realistas (Parte II) tendem a trabalhar com fungos e protozoários que por certo tempo mantém o hospedeiro vivo.

Hoje brincaremos com o conceito que, ao meu ver, é o mais coerente de todos. O zumbi fruto de experiências com as variações dos vírus membros da família Rhabdoviridae.

– “O virus da Raiva, Yuri?”

Esse mesmo! Ele é também conhecido como Hidrofobia por causar demência e por consequência o medo intenso de líquidos de todos os tipos. Inclusive pode causar Fotofobia (luz) e Aerofobia (correntes de ar), ou seja; ele é bem prejudicial em termos psicológicos. E é exatamente esse o grande diferencial dele para nossos outros parâmetros de zumbificação. Não é a a toa que vários filmes como 28 days later (2002) e I am Legend (2007) exploraram essa teoria!  Mas bem, vamos ao seu funcionamento!

O Rabies virus (termo técnico que designa a sua espécie clássica) é do gênero Lyssavirus e família Rhabdoviridae, tendo sete variações principais. Ele pode infectar todos os animais de sangue quente, preferindo entre eles os mamíferos: principalmente morcegos e carnívoros em geral¹.  Está presente ao longo de toda a história da humanidade, sendo extremamente temido: há relatos e descrições sobre ele desde 2300 a.C., sendo uma das doenças mais antigas conhecidas² com registros na Suméria, Grécia e Egito antigos. Será que é o que deu origem a tão numerosos e difundidos mitos de zumbis, como eu mencionei anteriormente?

A transmissão se dá principalmente através da saliva, no caso de receber uma mordida do animal infectado, e raramente através de arranhões ou contato da saliva com mucosas³. Mesmo com um meio de contágio tão restrito e de curto período (de 2 a 10 dias na incubação³) ele está presente no mundo inteiro, tendo sido erradicado somente em ilhas como Reino Unido, Japão e Austrália, em virtude da menor taxa migratória de animais selvagens.

Mas chega de conversa mole, vamos ao que interessa: contágio humano.

A raiva ocorre em 32 a 61% dos casos de exposição humana⁴, com um período de incubação de 20 a 90 dias (podendo ser 4 dias ou até 6 anos) e na maioria dos casos, assintomática. Aqui ela começa a atacar as células do sistema nervoso periférico. Já na fase denominada Podrômica, que dura de dois a dez dias, os sintomas começam a aparecer: febre moderada, dores de cabeça, dores no corpo, coçeira, formigamento, vómitos, dor abdominal, entre outros. O bicho pega mesmo na Fase Neurológica Aguda (FNA).

“Nesta fase as alterações provocadas pela proliferação do vírus da raiva nas estrutura do SNC (sistema nervoso central) se intensificam, causando ansiedade, nervosismo, insônia, apreensão, agitação, agressividade e depressão, alterações do comportamento, exacerbação das características próprias da personalidade. Muitas vezes as pessoas agressivas tornam-se mais irritadiças e as tímidas ficam mais deprimidas.”

 

Instituto Pasteur de São Paulo. (2009). Raiva – Aspectos Gerais e Clínica (pp. 26).

É nessa fase também que se manifestam as fobias supracitadas, fortes ao ponto de causarem convulsões⁴ mediante apresentação do estímulo temido, acompanhado de delírio, demência e febre de mais de 40 graus celsius(Ibid.) até que, após cerca de 10 dias, a pessoa morre.

Imagine então pessoas extremamente agressivas, que vão usar das unhas e dentes caso sintam-se ameaçadas por água, luz ou correntes de ar, com sérios surtos de demência acompanhada por alucinações, visto em 28 Days later.

– “Mas Yuri, só 32 a 61% dos casos são de fato infectados! Além disso pacientes depressivos ficam mais depressivos!”

Justo. Mas se estivéssemos falando de um surto normal de Rabies nós já estaríamos vivendo no apocalipse zumbí. Expanda esse raciocínio para um super-vírus da Raiva, com uma taxa de infecção e sobrevida maior, aliado a um menor periodo de incubação e uma demência e agressividades exacerbadas. Voilà: a receita do fim do mundo!

Se você ainda está cético quanto a isso, saiba que estamos somente um neurotransmissor (serotonina) de nos tornarmos máquinas de matar, em específico ao seu receptor chamado 5-HT1B.  Segundo um experimento⁵ feito em 1994, ratos criados sem esse receptor tornaram-se extremamente violentos a intrusos, inclusive entre sí. Una o vírus da Raiva que se propaga no SNP e no SNC, a uma engenharia genética sagaz a ponto de pegar uma carona nesse veículo e incapacitar o trabalho dos receptores 5-HT em geral, que você tem um Omega Rabies quentinho no forno, pronto para zumbificar o planeta. Por sinal, igual a cura do Câncer como mostrada em I am Legend.

Conclusão: O Rabies virus é mais uma das possíveis explicações para o apocalipse zumbí, por já ser um veículo capaz de zumbificar o hospedeiro e torná-lo agressivo sem ter tanta engenharia genética envolvida. A dificuldade aqui está em torná-lo mais potente e menos mortal, e de quebra aumentar drasticamente as porcentagens de infecção. Mas bem, para quem produz células-tronco e trabalha com reconstrução neuronal, brincar com a Raiva deve ser um passeio no parque!

Com isso fechamos nossa pequena série sobre Zumbologia e as possibilidades reais para um apocalipse zumbí. Mas o trabalho não acaba por aqui: a matéria e a discussão continuam na sessão dos comentários! Espero por vocês, e até a próxima sessão de estudos apocalipticos!

Referências:

1 – Xavier, S. M. (2005). Comparação dos métodos de inoculação intracerebral em camundongos (Mus musculus) e de inoculação em cultura de células BHK-21 (C13), no diagnóstico da raiva. (Tese de pós-graduação, disponível para leitura e download em http://teses.icict.fiocruz.br/lildbi/docsonline/get.php?id=088);

2 – Thadei, C. L. (s.d). Raiva ou Hidrofobia (disponível para leitura em http://www.saudeanimal.com.br/artig175.htm);

3 – Departamento de Vigilância Epidemiológica. (2006). Doenças Infecciosas e Parasitárias: guia de bolso, 6ª ed. revista, Brasília. Ministério da Saúde, p. 249-254.;

4 – Instituto Pasteur de São Paulo. (2009). Raiva – Aspectos Gerais e Clínica. (disponível para leitura e download em http://www.pasteur.saude.sp.gov.br/extras/manual_08.pdf);

5 – Saudou, F.; Amara, D. A.; Dierich, A.; LeMeur, M.; Ramboz, S.; Segu, L.; Buhot, M. C. & Hen, R. (1994) Enchanced agressive behavior in mice lacking 5-HT1B receptor. (disponível para leitura em inglês em http://www.sciencemag.org/content/265/5180/1875.abstract);