{"id":4445,"date":"2012-04-27T18:15:01","date_gmt":"2012-04-27T21:15:01","guid":{"rendered":"http:\/\/www.putzilla.net.br\/ptz\/?p=4445"},"modified":"2012-04-27T18:15:01","modified_gmt":"2012-04-27T21:15:01","slug":"por-que-zumbis","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/www.putzilla.net.br\/por-que-zumbis\/","title":{"rendered":"Por que Zumbis?"},"content":{"rendered":"
\n

\u201cE quando ele abriu o quarto s\u00ealo, ouvi a voz do quarto animal, que dizia: Vem e v\u00ea. 8 E apareceu um cavalo amarelo: e o que estava montado s\u00f4bre \u00eale tinha por nome Morte, e seguia-o o Inferno, e foi-lhe dado poder s\u00f4bre as quatro partes da terra, para matar \u00e0 espada, \u00e0 fome, e pela mortandade, e pelas alim\u00e1rias da terra.\u201d<\/p>\n<\/blockquote>\n

Apocalipse de S. Jo\u00e3o Ap\u00f3stolo; 6, 11\u00b9<\/p>\n

Atualmente vivemos a ascens\u00e3o (e quem sabe, o auge) da mais moderna interpreta\u00e7\u00e3o do Mito Apocal\u00edptico \u00a0at\u00e9 ent\u00e3o. Muitos de n\u00f3s viveram o final do mil\u00eanio passado, regado por interpreta\u00e7\u00f5es Apocal\u00edpticas do fim da Vida como a conhecemos. Fomos contempor\u00e2neos de seitas que promoveram o suic\u00eddio em massa em prol das mais diversas formas de \u201cRevela\u00e7\u00e3o\u201d; desde Aliens \u00e0 Santos. Quer queira quer n\u00e3o, estamos aqui por enquanto.<\/p>\n

A palavra \u201cApocalipse\u201d vem do grego, onde algo que estava velado, escondido por um v\u00e9u (kalumna) agora torna-se desvendado (apo) formando a t\u00e3o conhecida \u201cRevela\u00e7\u00e3o\u201d ou \u201cApok\u00e1lypsis\u201d\u00b2. Originalmente ela denota o mito do fim da vida e sociedade contempor\u00e2nea e, a partir de muitas interpreta\u00e7\u00f5es, um est\u00e1gio necess\u00e1rio para a ascens\u00e3o e continua\u00e7\u00e3o da exist\u00eancia, por\u00e9m agora sobre novos princ\u00edpios justos e adequados. S\u00edmbolo dos derradeiros dias do mundo, que ser\u00e3o marcados por fen\u00f4menos espantosos: gigantescas rebenta\u00e7\u00f5es dos mares, desabamentos de montanhas, medonhos escancaramentos da terra, vastos inc\u00eandios no c\u00e9u, num indescrit\u00edvel fragor. O apocalipse torna-se, assim, s\u00edmbolo do fim do mundo\u00b3. Vemos esse s\u00edmbolo mitol\u00f3gico em culturas Celtas, Maias, Proto-germ\u00e2nicas (N\u00f3rdicas), Indianas, Africanas, Indon\u00e9sias, Eg\u00edpcias e muitas outras\u00b3, al\u00e9m das mais contempor\u00e2neas e institucionalizadas mitologias monote\u00edstas. \u00c9 a representa\u00e7\u00e3o da Morte na sua mais pura ess\u00eancia: o fim do conhecido e o in\u00edcio do desconhecido al\u00e9m-vida.<\/p>\n

Agora temos nossa pr\u00f3pria vers\u00e3o moderna desse fen\u00f4meno: O Apocalipse Zumbi.<\/p>\n

A figura mais antiga (que eu conhe\u00e7a) dos mortos vindo devorar a carne dos vivos vem da Epop\u00e9ia de Gilgamesh (de aproximadamente 2,750 anos antes de Cristo), onde a deusa Inana (ou Ishtar), ap\u00f3s ter se oferecido a deitar com Gilgamesh, foi totalmente rejeitada e insultada. Tomada pela ira, ela vai at\u00e9 seu pai Anu e pede que ele deite a destrui\u00e7\u00e3o sobre a terra e sobre Uruk, pelos cascos do Touro Celestial (a constela\u00e7\u00e3o de Touro). Diz ela ent\u00e3o:<\/p>\n

\u201cOs celeiros est\u00e3o transbordantes de gr\u00e3os e os campos verdes de pasto para os animais. D\u00ea-me o maldito Touro e o povo se alimentar\u00e1 com fartura nos sete anos vindouros (…). Mas d\u00ea-me o Touro, e j\u00e1, pois se n\u00e3o o fizer muito em breve os mortos se nutrir\u00e3o dos vivos e os vivos dos mortos!\u201d\u2074<\/p>\n

\"\"<\/a><\/p>\n

No texto original, Ishtar amea\u00e7a, literalmente, abrir os port\u00f5es do submundo e liberar os mortos, para que se alimentem da carne dos vivos:<\/p>\n

\n

\u201cEu vou derrubar os port\u00f5es do submundo,
\nEu vou despeda\u00e7ar as batentes, e deitar as portas ao ch\u00e3o
\nEnt\u00e3o deixarei que os mortos subam e comam os vivos!
\nE os mortos mais numerosos que aqueles ser\u00e3o!\u201d\u2075<\/p>\n<\/blockquote>\n

Provavelmente h\u00e1 muitos exemplos de tal simbologia: dos mortos saindo do submundo e vindo devorar os vivos. Muitas delas desconhe\u00e7o, mas lembro muito claramente de um evento na Gr\u00e9cia antiga nomeado de Apophrades. Esse era o dia em que os mortos sa\u00edam de seus t\u00famulos e vinham visitar suas fam\u00edlias e lares. N\u00e3o literalmente, claro, j\u00e1 que essa era uma apologia trazida pela vis\u00e3o Empedocliana (de Emp\u00e9docles) onde, apesar da chama divina ter na morte abandonado o corpo, os atos do que era ent\u00e3o vivo permanecem e s\u00e3o transferidos a seu daemon\u2076. Portanto, de uma maneira simb\u00f3lica, os mortos voltavam \u00e0 vida na figura das atitudes que tiveram enquanto vivos, e permaneciam rondando a terra. Essa vis\u00e3o era feita da forma mais visceral, n\u00e3o mais travestida pelos ritos mortu\u00e1rios, mas sim com uma conex\u00e3o direta com a putrefa\u00e7\u00e3o da carne. O Apophrades era um per\u00edodo de m\u00e1-sorte, impureza e morte, mas ao mesmo tempo de purifica\u00e7\u00e3o e reden\u00e7\u00e3o com aqueles que partiam. Era comum se fazerem diversos julgamentos e senten\u00e7as sobre casos antigos relacionados aos mortos e tamb\u00e9m aos vivos, a fim de atenuar a m\u00e1cula dos que partiram.<\/p>\n

A figura da entidade morta-viva \u00e9 interessantemente comum. Ela \u00e9 vista em diversas culturas, com exemplos a citar: o Ghoul (ou originalmente, gh\u016bl) do folclore \u00e1rabe, criatura que habita cemit\u00e9rios e se alimenta de carne. Os Draugr sim, isso existe fora de Skyrim, seu nerd da cultura Proto-germ\u00e2nica, aqueles que estavam mortos e voltam a andar. No Juda\u00edsmo vemos a figura do Golem, que n\u00e3o \u00e9 exatamente um morto-vivo, mas vida criada da mat\u00e9ria inanimada. Vemos na cultura chinesa os Chiang-shih, vampiros ou mortos-vivos que se alimentam dos viventes. M\u00famias, Vampiros, Liches, Esqueletos… e at\u00e9 que enfim: os Zumbis Hoodoo do folclore de algumas culturas africanas (n\u00e3o confundir Voodoo com Hoodoo: um \u00e9 uma religi\u00e3o, outro \u00e9 uma pr\u00e1tica ritual\u00edstica espec\u00edfica, respectivamente).<\/p>\n

\"\"<\/a><\/p>\n

Nossa talvez n\u00e3o t\u00e3o querida figura do Zumbi moderno \u00e9 a lenta transi\u00e7\u00e3o do Zombie Hoodoo. Sua raiz \u00e9 o folclore africano, estabelecendo-se principalmente em pa\u00edses centro-americanos, e, emblematicamente, no Haiti. Ele \u00e9 um corpo morto e que foi animado utilizando-se de feiti\u00e7aria, n\u00e3o \u00e9 dotado de consci\u00eancia, por\u00e9m \u00e9 atento \u00e0 sua volta sendo respondente \u00e0 est\u00edmulos externos. Obedece estritamente o feiticeiro que operou o ritual. Existe muita informa\u00e7\u00e3o legal sobre as teorias acerca da \u201czumbifica\u00e7\u00e3o\u201d, mas que s\u00e3o t\u00e3o interessantes que merecem um artigo pr\u00f3prio!<\/p>\n

Chegamos ao zumbi que conhecemos. A figura emblem\u00e1tica aqui \u00e9 a de George Romero, como quem trouxe o tema do apocalipse zumbi \u00e0 cultura popular, que lentamente desenvolveu-se para o que hoje \u00e9 o zumbi moderno. N\u00e3o mais lento e cambaleante como antes, agora muitos deles s\u00e3o r\u00e1pidos e implac\u00e1veis, como no game Left 4 Dead, filmes como Dawn of the Dead e livros como o famoso Guia de Sobreviv\u00eancia de Daniel Brooks.<\/p>\n

\"\"<\/a><\/p>\n

Mas por que Zumbis? Qual o motivo deles terem feito tanto sucesso no nosso imagin\u00e1rio p\u00f3s-moderno? J\u00e1 tivemos tantos cen\u00e1rios apocal\u00edpticos na nossa cultura at\u00e9 ent\u00e3o, o que os Zumbi t\u00eam que os outros n\u00e3o?<\/p>\n

Acredito que isso se d\u00ea por m\u00faltiplos fatores, e entramos aqui em um setor n\u00e3o mais de fatos hist\u00f3ricos ou discuss\u00f5es acad\u00eamicas, mas simples suposi\u00e7\u00f5es bem-fundamentadas.<\/p>\n

Inicialmente, vivemos em uma era de distanciamento da Morte. Sempre vivemos, mas ela est\u00e1 cada vez mais amea\u00e7adora. A poucos s\u00e9culos atr\u00e1s, a expectativa de vida de um humano era de pouco mais do que 50 anos, enquanto hoje quem viver menos que 70 \u201cmorreu cedo\u201d. Fugimos da velhice e dos aspectos que sequer lembre morte \u2013 rugas, dores, falta de aptid\u00e3o f\u00edsica s\u00e3o abomin\u00e1veis e pass\u00edveis de terror. N\u00e3o visitamos nossos mortos, n\u00e3o fazemos para eles rituais como antes \u2013 agora os cremamos, quando muito os enterramos. Estamos cada vez mais aptos a tapar essa realidade fatal, a de que a morte existe. Ao passo que a reprimimos com toda a for\u00e7a, ela volta com mesma intensidade atrav\u00e9s da figura mitol\u00f3gica do Zumbi.<\/p>\n

Seres mortos, decadentes, putrefatos e ensopados de sangue coagulado. Seu couro cabeludo, ou o que resta dele, cobre pontos expostos de seu cr\u00e2nio j\u00e1 tornando-se cinza. Onde haviam antes olhos brilhantes e cheios de vida, jazem globos empalidecidos que comunicam morte. E o pior: essas carca\u00e7as andam em sua dire\u00e7\u00e3o, prometendo-o uma morte lenta e dolorosa, e o seu posterior retorno como tudo aquilo que repudiou durante a vida.<\/p>\n

Os mortos travestem nossos medos mais profundos e irremediavelmente escondidos da luz da consci\u00eancia pelo homem moderno. Lidamos com a morte todos os dias, mas de maneira mais e mais fugaz: ligamos a TV e abrimos o jornal para not\u00edcias de mortes e cat\u00e1strofes, as quais arrebatamos com indiferen\u00e7a. A morte \u00e9 distante \u2013 a ilus\u00e3o da vida \u00e9 pr\u00f3xima.<\/p>\n

\"\"<\/a><\/p>\n

Tudo isso cai por terra no Apocalipse Zumbi. Nele, as vestes da sociedade moderna \u2013 consumismo, individualismo, industrialismo, capitalismo entre outros \u2013 desaparecem como a nuvem et\u00e9rea que s\u00e3o, dando lugar \u00e0 mais instintiva e natural das nossas praticas: a sobreviv\u00eancia. Ao nos vermos parte de um mundo onde essas ilus\u00f5es sociais se desfiguram e nos jogam na cara nossa falta de conex\u00e3o com a realidade da sobreviv\u00eancia, vemos o cen\u00e1rio ideal do Apocalipse: o fim de uma era de sombras e frugalidades, a esperan\u00e7a do renascimento a partir de qualidades verdadeiramente necess\u00e1rias para nossas vidas.<\/p>\n

Vem portanto a figura do Sobrevivente, que por si \u00e9 um pouco mais complexa. Ele vive em um ambiente hostil e a ele sobrevive como pode, quase como uma figura heroica. Ele tem uma esp\u00e9cie de \u201clicensa para matar\u201d figuras humanas, j\u00e1 que \u00e9 por sobreviv\u00eancia. Vemos o auge da viol\u00eancia que nos permeia e que ao mesmo tempo a ela d\u00e1vamos de ombros. Agora o sobrevivente \u00e9 ator principal na viol\u00eancia contra sua esp\u00e9cie, e sofre as consequ\u00eancias psicol\u00f3gicas disso.<\/p>\n

Vejo o Apocalipse Zumbi como, literalmente, nossos mortos \u2013 o esgoto, a podrid\u00e3o e a decad\u00eancia \u2013 saindo das covas onde os colocamos para tomar seu devido espa\u00e7o nas nossas vidas. Todas as nossas atitudes e posturas, todas nossas sombras e nossos malfazeres n\u00e3o desaparecem entre as areias do tempo, pelo contr\u00e1rio \u2013 aguardam. Zumbis s\u00e3o o s\u00edmbolo maior das consequ\u00eancias nefastas dos nossos atos impensados, da nossa sociedade decadente e das nossas personalidades alienadas que voltam para nos jogar na cara o que realmente somos: somos tamb\u00e9m morte, viol\u00eancia, podrid\u00e3o. N\u00e3o h\u00e1 leis, n\u00e3o h\u00e1 deuses, n\u00e3o h\u00e1 sabedoria e n\u00e3o h\u00e1 botox suficiente para nos salvar das cinzas.<\/p>\n

N\u00e3o \u00e9 a toa que ao mesmo tempo que surge o Zeitgeist e a consci\u00eancia ecol\u00f3gica, surja tamb\u00e9m o zombie mythos. Vivemos em uma \u00e9poca de encarar as consequ\u00eancias, n\u00e3o mais de mascarar a nossa pr\u00f3pria realidade.<\/p>\n

O mito do Apocalipse Zumbi traz n\u00e3o somente a morte do mundo, mas a morte do mundo tal qual o conhecemos, assim como a promessa de um renascimento mais justo e consciente atrav\u00e9s da realiza\u00e7\u00e3o da nossa natureza completa e \u00fanica. N\u00e3o somos s\u00f3 beleza ou progresso, somos tamb\u00e9m viol\u00eancia e putrefa\u00e7\u00e3o, somos mais do que vida ou morte: somos a vida que levamos, somos a forma que sobrevivemos.<\/p>\n

\"\"<\/a>
\nEscrito por: Yuri Dittrich P. da Silva<\/strong>
\nNerd, Gamer e Psic\u00f3logo (CRP 16388-08)
\nRefer\u00eancias:
\n\u00b9 B\u00edblia Sagrada (1971) B\u00edblia Sagrada edi\u00e7\u00e3o Barsa (Trad. Pd. Figueiredo, A. P.) (Novo Testamento, pp. 230). Rio de Janeiro: Catholic Press.
\n\u00b2 Wikip\u00e9dia (
http:\/\/pt.wikipedia.org\/wiki\/Apocalipse<\/a>) acessado em 22\/04\/2012.
\n\u00b3 Chevalier, J., & Gheerbrant, A. (2006).\u00a0Dicion\u00e1rio de S\u00edmbolos.\u00a0(pp. 65-66) Rio de Janeiro: Jos\u00e9 Olympio.<\/p>\n

\u2074 Franchini, A. S., & Seganfredo, C. (2008).\u00a0Gilgamesh: O primeiro her\u00f3i mitol\u00f3gico. (pp. 193). Porto Alegre: Artes e Of\u00edcios.<\/p>\n

\u2075 Epop\u00e9ia de Gilgamesh \u2013 Texto Original, T\u00e1bula VI
\n(
http:\/\/www.ancienttexts.org\/library\/mesopotamian\/gilgamesh\/tab6.htm<\/a>) acessado em, 22\/04\/2012. Tradu\u00e7\u00e3o livre por Yuri Dittrich P. da Silva.
\n\u2076 Bloom, H. (1971). The anxiety of influence \u2013 a theory of poetry. London: Oxford University Press. Dispon\u00edvel em (
http:\/\/web-facstaff.sas.upenn.edu\/~cavitch\/pdf-library\/Bloom_Apophrades.pdf<\/a>). Acessado em 22\/04\/2012.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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