HERÓI, VOCÊ!

“ – Juro, cria-de-Loki infernal, que esta será a última vez que irá tirar vidas inocentes! – disse o herói, furioso só de imaginar que espécie de monstruosidades o inimigo estaria a cometer naquele instante.

– Sem meu braço para auxiliar na defesa dos campos e das aldeias, o que será do pobre povo indefeso?

Tomando, então, do seu afiado remo-de-sangue, o guerreiro começou a golpear todas aquelas riquezas inúteis, causa principal da desgraça que havia se abatido sobre seu povo. Copos, taças, bandejas, colares, anéis, braceletes e uma infinidade de outras riquezas voavam pelos ares a cada novo golpe raivoso da lâmina geat.”

Cena com Beowulf ao entrar na caverna do Dragão¹

Quantos entre nós já não nos deparamos em situação semelhante? Claro, não falo da vida real, mas sim de qualquer livro ou game heroico que já tenhamos jogado. O mito do Herói é presente e recorrente em uma ampla gama de games, principalmente naqueles do gênero do RPG.

Quem não se emocionou a primeira vez que jogou Ocarina of Time, resgatando a princesa Zelda e derrotando o vilão Ganondorf? Ou em algum dos jogos da franchise Final Fantasy, salvando o mundo pela décima-terceira vez? Ou até mesmo Mario, quando finalmente conseguiu derrotar o Bowser? A indústria de entretenimento virtual usa e abusa da imagem do Herói Mitológico como uma forma de nos fazer imergir em um mundo, história e circunstâncias diferentes das da nossa realidade atual. Bem, talvez nem tão diferentes assim.

Entre os vários mitos arquetípicos (nos quais não vamos precisar entrar em detalhes, senão galera vai embarcar em sono profundo) temos a grande recorrência do Herói. Sim, a figura heroica é uma estrutura de mito per se! Essa estrutura pode ser encontrada nas tribos primitivas, na mitologia clássica greco-romana e também no oriente, dentre outras, vindo desde então até a cultura moderna. Isso  denota um sentido universal que emerge mesmo em culturas e localizações distintas sem comunicação e/ou contato entre si. Mas não só isso – segundo Henderson², esse mito “aparece também em nossos sonhos. Tem um poder de sedução dramática flagrante e, apesar de menos aparente, uma importância psicológica profunda.”

Existem várias formas de descrever o mito heroico, cada um favorecendo uma parcela diferente dessa figura multi-facetada. De um modo geral ouvimos repetidamente a mesma história do herói de nascimento humilde mas milagroso, provas de sua força sobre-humana precoce, sua ascensão rápida ao poder e à notoriedade, sua luta triunfante contra as forças do mal, sua falibilidade ante a tentação do orgulho e seu declínio, por motivo de traição ou por um ato de sacrifício heroico, onde sempre morre. Outra característica relevante no mito do herói é que ele vem fornecer-nos uma chave para sua compreensão. Em várias destas histórias a fraqueza inicial do herói é contrabalançada pelo aparecimento de poderosas figuras tutelares – ou guardiões – que lhe permitem realizar as tarefas sobre humanas que lhe seriam impossíveis de executar sozinhos ².

Lendo esse pequeno parágrafo, muitos heróis dos Games vêm à mente já que, de certa forma, a ascensão e declínio do personagem foi nossa própria! Esse é o brilho do poder tomar as vezes do personagem principal da história: é a oportunidade de embarcar em um épico de luta, de fracasso, de dificuldade, de necessidade de ajuda, de superação e de, se tudo der certo, triunfo. De certa forma, é para isso que serve a figura mitológica em geral: ele é a chave para uma forma de compreensão da nossa própria realidade, uma oportunidade para aprendermos uma forma de lidar com algo que nos é atual.

Então não se culpem ao pensar – “Cara, o que o Link faria agora?”, pois é justamente essa a função da figura do herói!! Quando jogamos qualquer game heroico, aprendemos uma nova forma de lidar com um dilema e uma história, mais ou menos próxima daquela que nos é natural. Com eles, temos a oportunidade de viver circunstâncias, decisões e consequências de atos que talvez não nos sejam diretamente úteis, mas talvez um dia serão.

Dessa sorte, Campbell³ reforça o padrão universal: “o que julgo ser uma boa vida é aquela com uma jornada do herói após a outra. Você é chamado diversas vezes para o domínio da aventura, para novos horizontes”. E também assinala que a tomada de decisão por parte do herói é sempre ousada frente às consequências, pois “existe sempre a possibilidade do fiasco. Mas existe também a possibilidade da bem aventurança”.

Nossa vida é, portanto, séries de jornadas heroicas que temos à nossa frente.

Cabe a nós ouvir ao chamado e enfrentar esse mundo obscuro e desconhecido, tornando-nos heróis. Ou permanecer à margem de nós mesmos, tornando-nos espectadores da nossa própria história. É atribuição essencial do mito heroico desenvolver no indivíduo a consciência do ego – o conhecimento de suas próprias forças e fraquezas – de maneira a deixá-lo preparado para as difíceis tarefas que a vida lhe há de impor.²

Por essas razões que esses games heroicos nos são tão próximos e desejáveis. Nossa própria vida é uma jornada que sem dúvida é heroica e perigosa, e na qual de certa maneira, nos fazemos triunfantes. Por isso que nos emocionamos junto com nossos heróis, pois quando jogamos, nós realmente vivemos aquele conto e lembramos a nós mesmos o valor da ousadia e o sabor da vitória e retorno à casa.

E dele emergimos com novas experiências e maneiras de lidar com a nossa própria vida. Emergimos talvez mais aptos a sermos heróis nas nossas próprias vidas.

Por Yuri (Baha)

Referências:

¹Franchini, A. S., & Seganfredo, C. (2008). Beowulf: recriação em prosa do poema medieval inglês. (pp. 209) Porto Alegre: Artes e Ofícios.

² Henderson, J. L. (n.d.) Os Mitos Antigos e o Homem Moderno. in Jung, C. G. O Homem e seus Símbolos. (pp. 104-156). Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

³ Campbell, J. (2008). Mito e Transformação (pp. 156). São Paulo: Ágora.   2008, p.156