A dama da noite (entrada no Concurso Cultural RC Skynerd)

Um resumo rápido para quem não sabe: alguns dias atrás, eu decidi entrar em um concurso cultural na Skynerd (a rede social do Jovem Nerd), cujo prêmio daria o livro A Batalha do Apocalipse ao vencedor. Como o concurso já acabou e eu achei que deve ter outras pessoas interessadas em ler a história, eu decidi disponibilizá-la para quem quiser lê-la. Sinta-se livre para comentar tanto aqui quanto na Skynerd.

A Dama da Noite

Por: Vinícius Melo Bahia

– E a mulher do tempo disse que o tempo ia ficar aberto o dia todo – disse Micky.
Uma chuva forte castigava o carro onde Micky e Mac estavam estacionando em frente a um prédio cuja fachada já havia visto reformas melhores. Dentro do carro, Micky assoava seu nariz com um lenço descartável há muito assoado além de seu nível recomendado, enquanto Mac observava calado, na tela holográfica de seu relógio, as notícias da semana – e a previsão do tempo-, um hábito comum para evitar ter de ouvir aos resmungos diários de Micky, que haviam ficado mais constantes recentemente.
– E essa chuva que parece não acabar desde as três – continuou resmungando-, parece que pegaram as nuvens do ano todo e botaram pra chover justo hoje. Já são onze da noite, caramba – e assoou o nariz novamente.
Cansado das reclamações costumeiras de seu parceiro, Mac fechou a tela do relógio, destravou o cinto de segurança do banco do carona e disse:
– Vamos descer.
– Qual é! Ainda tá chovendo canivetes e não quero sujar o meu casaco. Foi um presente da minha mulher.
Mac fuzilou-o com um olhar tão feroz que Micky se projetou o mais perto da janela que seu cinto de segurança permitia, de forma a parecer que estava tentando evitar um cachorro raivoso.
– Faz três semanas que ela é sua ex-mulher – disse Mac, tentando mover o mínimo de músculos para falar. – E um pouco de água no rosto nunca fez mal pra ninguém.
Sem muitas opções, os dois saíram do carro em meio à chuva torrencial que Micky tanto odiava. A acomodação da água em seu casaco e em seu chapéu não o agradava nenhum pouco, e o fato de Mac ter trazido um guarda-chuva escondido debaixo do banco só piorava a situação para ele.
Logo após terem saído do carro, Micky travou o carro e os dois atravessaram a rua em direção ao prédio de fachada deteriorada, e então subiram pela soleira de concreto rachado e abriram a porta de madeira carcomida, adentrando o local.
– Qual é a missão de hoje? – perguntou Mac, vasculhando a entrada do prédio com os olhos.
Micky rapidamente retirou um papel do bolso, desdobrou-o e o colocou na posição certa de leitura.
– Marcel Lorenzo – recitou. – Um traficante de drogas que gosta de festas, esculturas de macarrão e está sendo procurado por sete cidades, incluindo a nossa. Aparentemente ele está no quinto andar do prédio, segundo nossas fontes. E por fontes queira-se dizer alguns vizinhos que estavam bastante insatisfeitos com o volume e a frequência das festas que ele dava – e deixou escapar um riso.
Rapidamente Mac avistou uma escadaria à direita deles e logo seguiu em frente, com Micky logo na retaguarda. Cada degrau que subiam soltava um alto rangido, ecoando no prédio todo e atraindo uma quantidade de observadores que se amontoavam nas frestas escuras das portas para observar aquela dupla improvável seguindo seu caminho escadaria acima até eles alcançarem o andar superior, onde eles se recolheriam e voltariam a fazer o que quer que estivessem fazendo antes.
Ao chegarem ao quinto andar, Micky estava com a testa encharcada de suor e estava com o rosto tão vermelho que aparentava estar preste a ter um ataque, mas Mac parecia ainda disposto a continuar com seu serviço e andou até a porta verde entreaberta no final do corredor.
– Espera por mim! – disse Micky, com o que sobrava de ar em seus pulmões, e apressou o passo.
Chegando na porta, Mac se encostou na coiceira da porta, tentando evitar que quem estivesse por detrás da porta pudesse vê-los, e fez o sinal para Micky entrar primeiro. Ele sacou a pistola do coldre em sua cintura, escancarou a porta com um chute e disse, arfando:
– Polícia de Rune! Mãos ao alto ago…
Antes que pudesse terminar a frase, Micky observou o local e o que viu retirou o que sobrou de suas palavras: não havia nada. Os sofás estavam rasgados e jogados em um canto debaixo de uma janela com a persiana torta e pendendo para a esquerda, não havia sinal de mobília alguma, com exceção de algumas cadeiras e um punhado poeira em todo canto, e o que sobrou da pia da cozinha, nada mais que uma torneira frouxa e uma pia de porcelana quebrada. Era como se ninguém estivesse naquele lugar por meses. Ou semanas.
Perplexo, Micky se virou para Mac:
– Acho que o departamento errou de novo – disse.
A expressão de Mac parecia ter mudado de uma tensão constante para uma tímida satisfação.
– Eles não erraram – respondeu -, você que errou no tempo das coisas.
– Como assim eu errei? Se esse é o lugar onde o Marcel está, então ele devia estar aqui!
– Estava aqui – corrigiu Mac, procurando uma cadeira para se sentar. – Acontece que nós o prendemos faz umas três semanas.
A resposta foi como um golpe no estômago de Micky. Completamente desorientado, ele cambaleou até desabar no sofá. A questão havia mudado de “Por que estamos aqui?” para “Por que você me trouxe aqui?”.
– Há três semanas – começou Mac -, nós reunimos todo o pessoal para poder prender o cara, que facilmente se rendeu após termos ameaçado destruir um busto feito com macarrão para fuso. Mas nesse mesmo tempo, você havia desaparecido sem avisar ninguém, nem mesmo a sua esposa Marceline – e com um suspiro forte prosseguiu. – E duas semanas depois você volta completamente maltrapilho e sem ter memória de onde estava. Nós estranhamos o caso e pedimos para o departamento de narcóticos fazer um exame de sangue seu, no qual você acabou recusando dizendo que “não precisava porque seu colesterol estava bom e sua mulher estava cuidando de sua alimentação”. E nós começamos a suspeitar ainda mais porque sua mulher havia conseguido a certidão de divórcio um dia antes de termos ido prender o Marcel.
O fluxo agressivo de informações em sua mente havia deixado Micky ainda mais confuso. “Se tudo isso aconteceu comigo, por que diabos eu não me lembro de nada disso?”, pensou. Com a respiração ofegante, ele se viu apertando mais e mais a pistola contra o peito.
– Com a rejeição do teste de sangue, Margareth me pediu para levá-lo até aqui como última opção para ver se você se lembrava de alguma coisa dessas três semanas, mas como você ainda não se lembra de nada, acho que já sei o que aconteceu com você.
Juntando as forças de dentro do seu peito, Micky conseguiu balbuciar:
– O quê?
A resposta caiu como um punho direto em seu peito:
– Você está viciado na dama da noite.
Sentindo uma explosão, Micky finalmente obteve as forças necessárias para voltar a falar.
– Mas como eu poderia estar viciado nisso?! Você sabe muito bem que sou eu quem mais sabe sobre os perigos dessa droga!
– E é por isso que a teoria do vício só se fortalece – respondeu Mac, com a mesma expressão de antes. – Você era o responsável por guardar as drogas até que o pessoal decidisse se estava bom o bastante para destruí-las de uma vez só, se é que você também se lembra disso.
– Você ainda não respondeu o por quê de eu estar viciado na droga! – disse Micky, mais vermelho e suado que tomate recém colhido, e agora na defensiva.
– Mas eu respondo agora: já há algum tempo você tinha problemas com a Marceline, e depois de uma briga feia entre vocês dois, você recorreu à solução que você mais conhecia. Afinal, você mesmo disse que sabe mais do que ninguém sobre os efeitos da dama da noite.
A resposta veio quase que mecanicamente à boca de Micky.
– Um alívio enorme e uma sensação de satisfação instantânea.
– Exatamente – disse Mac, se levantando da cadeira e agora estava andando de um lado ao outro do apartamento. – Mas você também deveria saber sobre os efeitos colaterais dela: perda de memória, irritabilidade extrema, dependência elevada e, com o uso prolongado, a droga frita os neurônios ao ponto de transformar o usuário em um vegetal ou de fazer seu cérebro literalmente escorre pelo nariz e pelos ouvidos, causando morte instantânea.
– Mas você ainda não me mostrou que sou viciado!- gritou Micky, percebendo que havia gritado quando suas roupas estavam completamente encharcadas de suor e quando sua voz havia ecoado pelo prédio todo.
– Só há um jeito de saber – disse Mac, austero, sacando um revólver de seu sobretudo e apontando-o para o lado direito do peito de Micky.
Sem muito tempo para esboçar uma reação apropriada, Micky se levantou do sofá, tirou a pistola do peito e apontou-a para Mac. Antes que pudesse apertar o gatilho, ele ouviu um estouro.
Seguido do disparo do revólver, Micky fora jogado novamente ao sofá e de seu casaco emanou uma névoa roxa cristalina que rapidamente se ergueu no ar. Mac estava certo: era a dama da noite.
Instintivamente, ele tentou pegar a névoa e colocá-la de volta no casaco, mas toda vez que fechava o punho, mais a droga parecia escapar de seu alcance. Depois de algumas tentativas, todas em vão, Mac, com o nariz e bocas tapados por um lenço retirado de um dos bolsos do sobretudo, agora estava de frente a um Micky derrotado, no chão, com suas últimas forças agora fora de seu corpo.
– Eu vou morrer, não vou? – perguntou, com lágrimas nos olhos, parecendo agora aceitar o seu destino.
– Temo que sim, Micky – disse Mac, tentando não demonstrar pena ao seu parceiro moribundo.
Lentamente, ele se deitou de barriga para cima no chão, colocou o lenço em suasmãos e o encarou. Estava repleto de manchas negras, a maioria já estava seca e umas duas ainda estavam úmidas. Enquanto contemplava as manchas, seu cérebro – ou o que restava dele – procurou assimilar as informações que havia recebido e tentou organizá-las de forma que desse coerência a ele, mesmo com algumas lacunas e outras informações mal explicadas. Ao final do processo, o resultado o deixou satisfeito o suficiente para levantar um sorriso de um dos cantos de sua boca ressecada.
Ao sentir algo quente saindo de seus ouvidos e de suas narinas e correndo em direção ao chão, percebeu que sua hora havia chegado, mas conseguiu juntar alguns segundos para poder dar o último adeus a Mac, e algumas palavrinhas a mais.
– Adeus, velho amigo. – sussurrou Micky. – Diga à minha esposa que ela não verá um centavo da minha herança.
– Eu vou dizer – respondeu Mac, escolhendo sabiamente suas palavras. Ele não gostava muito de despedidas, principalmente quando a despedida era eterna.
Em um gesto respeitoso e condolente, Mac observou os últimos momentos de Micky, marcados por gritos agudos e fortes convulsões, que iam se acentuando conforme o líquido negro que escorria de sua cabeça se amontoava ao seu redor. A cena se prolongou até a poça preta alcançar os sapatos de couro igualmente pretos de Mac; a partir desse momento, se instalou um silêncio sepulcral no prédio todo. Seu velho amigo se tornara vítima do que ele tanto lutou, derrotado por uma pressão esmagadora causada por um trabalho extensivo e um casamento no caminho da ruína. Quando não aguentou mais, ele encontrou refúgio em sua velha inimiga, que lhe ofereceu um curto período de felicidade, porém acabou lhe tirando tudo em troca.
Como uma dama da noite.

Já fora do prédio, Mac encontrou conforto no brilho amarelo da luz tremeluzente de um poste alguns metros ao seu lado. Ao olhar para o alto, percebeu que a chuva havia parado, trazendo com ela um ar mais limpo e um céu estrelado, acompanhado de uma lua cheia e brilhante, parecendo transmitir parte de sua luz para outras estrelas necessitadas. Parecia uma mensagem para ele de que as coisas iriam melhorar no futuro, esteja ele na esquina ao lado, pronto para aparecer em sua frente, ou pacientemente esperando até a hora devida. Até que seu relógio vibrou. Era uma chamada de Margareth, sua secretária. Mac divagou por alguns segundos, pensando se seria o certo atender a chamada, até que decidiu apertar o botão verde disposto na tela. Imediatamente, uma voz feminina saiu do outro lado da linha.
– Então, encontrou qual a causa do desaparecimento dele? – perguntou a voz.
– Era realmente a dama da noite – respondeu Mac, no mesmo tom de antes de ter entrado no prédio -, como você havia me dito antes.
– Quer dizer que ele…
– Deixou uma mensagem para Marceline, mas acho que ela não vai gostar muito – cortou Mac.
O silêncio se seguiu por alguns segundos até Margareth retirar a coragem do peito e dizer:
– Pouco depois de vocês dois saírem, o pessoal do setor comprou algumas pizzas para complementar a hora extra. Quer que eu guarde alguns pedaços para você?
– Tem de pepperoni? – perguntou Mac, um pouco mais animado.
– Tem – respondeu ela.
– Estou indo para aí – entrou no carro, ligou a ignição e pisou no acelerador em direção à delegacia.
Terminava assim mais uma noite normal em Rune.